sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

As imagens do socialismo


Raúl Zibechi
Brecha

A polémica nascida no calor da recente proposta do presidente Hugo Chávez de criar um partido único dos seus partidários na Venezuela, que vai de mão dada com a sua iniciativa de construir o socialismo do século XXI, parece uma boa oportunidade para animar um debate sempre vigente e necessariamente não concluído sobre o outro mundo ao qual muitos aspiramos. Como apontou o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, é impossível avançar no debate sem fazer um balanço do socialismo real. Para aqueles de nós formados no pensamento de Marx, a experiência passada e presente do «movimento histórico que se está a desenvolver diante dos nossos olhos» (Manifesto Comunista) é a referência inevitável neste debate.

As trajectórias de muitos movimentos sociais latino-americanos têm estreita relação com as metáforas às quais Marx apelou para delinear as suas visões da revolução e do mundo novo. Marx não se empenhou em formular uma “teoria da revolução”, como lhe foi atribuído por boa parte dos seus seguidores, mas limitou¬ se a pensar com base em imagens –ou parábolas, se se preferir– nascidas da experiência concreta. As suas construções teóricas pretendiam impulsionar o movimento real, não indicar um caminho único, atemporal, ahistórico, válido para todos os tempos e em todas as latitudes.

Na esteira da Comuna de Paris (em A guerra civil em França), recordou que «os operários não têm nenhuma utopia pronta a implantar por decreto do povo (...) não têm que realizar nenhuns ideais, mas simplesmente soltar os elementos da nova sociedade que a velha sociedade burguesa agonizante contém no seu seio». Noutras ocasiões, recorreu à imagem da revolução como parteira: não é a revolução que cria o mundo novo, mas, “simplesmente”, o ajuda a nascer. Nunca considerou o Estado, instituição que sempre considerou como obstáculo ao caminho emancipatório, como a ponta de lança da construção do socialismo.

Perante os nossos olhos aparecem hoje múltiplas práticas de mudança social que crescem no seio dos movimentos, da Selva Lacandona à Patagónia. São criações originais de parcelas dessas sociedades outras (de indígenas, sem-terra, desempregados, pobres das periferias urbanas) que vêm adquirindo forma nas margens do mercado e em contramão da acumulação de capital. No geral, não respondem a desenhos pré-fixados por esta ou aquela corrente política –«não se baseiam em ideias e princípios inventados por este ou aquele reformador do mundo», como diz o Manifesto–, mas bebem nos inesgotáveis mananciais das culturas e tradições dos de baixo. Como todas elas são diferentes, as suas criações são igualmente diversas e díspares.

Nos territórios dos movimentos, que são com frequência sociedades outras em movimento, surgem práticas educativas, de saúde, de produção, assentadas em relações sociais não-capitalistas. Operários de fábricas recuperadas que produzem sem capatazes e reinventam formas de divisão do trabalho que não geram hierarquias; camponeses que criam assentamentos que implicam uma verdadeira revolução cultural na vida rural; indígenas que recuperam os seus saberes curativos ancestrais; desempregados que inventam mercadorias e as trocam com outros desempregados. Nestes espaços, a educação converte¬ se, amiúde, em auto¬ educação e, portanto, adquire traços emancipatórios ao dissolver a clássica relação sujeito-objecto que reina nas aulas.

Se alguém pretender delinear que aspecto terá o socialismo, só terá que observar estes mundos outros para captar traços que se vão revelando aos poucos, numa multiplicidade de práticas que são embriões do mundo novo. Mas o primordial está por vir. Ainda não sabemos como será o socialismo porque, no fundamental, vai tomando forma nas diferentes experiências dos oprimidos à medida que vão mobilizando as suas potências criativas. O contrário dessa imagem tão apreciada por certos revolucionários, que asseguram que “o caminho está traçado” e só falta percorrê-lo. O socialismo entendido como propriedade estatal dos meios de produção e desenvolvimento das forças produtivas fracassou estrepitosamente. O mundo novo cresce de dentro para fora e expande¬ se horizontalmente, por fora e na contramão das instituições. Para o parto dessa sociedade nova, parece ser necessário contar com uma ferramenta de carácter estatal – a força, a violência organizada –, esses fórceps que ajudam a “romper a casca”, para voltar às imagens de Marx. Depois, os fórceps devem ser descartados para que não se transformem num fim em si mesmos e acabem por desfigurar o mundo novo.

Na Venezuela, o socialismo tem dois caminhos. Ou assenta nas milhares de iniciativas dos de baixo, nos mais de 6 mil comités de terra urbana ou nas 2 mil mesas técnicas da água, para dar apenas dois exemplos, onde milhões de pessoas estão a participar; ou assenta no aparato estatal. Neste caso, o Estado encarrega¬ se da produção, da saúde e da educação, e com o tempo de todos os aspectos da vida. Será um Estado cada vez mais forte, mais poderoso, mais centralizado, que formará uma sociedade à sua imagem e semelhança: homogénea, idêntica a si mesma, sem espaços para a diferença e a dissidência. É um caminho conhecido. Com toda a segurança, conduz à melhoria dos índices de vida da população, mas não tem nada a ver com o socialismo nem com a emancipação. A relação comando-obediência, um dos eixos do sistema capitalista e do Estado, continuará a ocupar um lugar dominante.

Este modelo tem a seu favor a previsibilidade. Sabe-se até onde conduz, quem tem o timão e quem executa as ordens. Pelo contrário, os caminhos que levam a um mundo outro, ao socialismo, digamos, são incertos, imprevisíveis e devem reinventar-se sempre. Não há modelos. No meu modo de ver, a experiência de autogoverno dos de baixo mais avançada que existe actualmente é Chiapas, onde todos e todas aprendem a governar¬ se, dissolvendo assim o Estado. Longe de ser um modelo, é apenas um ponto de referência, a prova palpável de que é possível ir mais além do que existe, além dos caminhos trilhados que a história de mais de um século tem mostrado que reproduzem formas de opressão intoleráveis.

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