domingo, 14 de junho de 2009

Mariátegui, a Apra e a questão do indígena amazônico

Alejandro Loarte
ALAI

Hoje 14 de junho, José Carlos Mariátegui completaria 115 anos. Um grande tributo em sua memória tem sido as propostas ''criativas e heroicas'' dos socialismos contemporâneos que se tornam realidade na América Latina, sem ser “nem imitação, nem cópia” de algum sistema social, econômico e político, nem mesmo dos socialismos que existiram no século XX.

Ainda melhor homenagem lhe brindam os indígenas amazônicos com suas jornadas em defesa da terra e do regime de vida comunitária, prejudicada pelo entreguismo da Aliança Popular Revolucionária Americana (Apra), sob a presidência de Alan García.

Como nos anos 1920, o Peru enfrenta o dilema sobre o modelo econômico dominante. Mariátegui embasou seus argumentos na análise da estrutura econômica (feudal e semicolonial) da realidade peruana e sua expressão correspondente na luta de classes e propôs o socialismo baseado no coletivismo indígena. Um argumento não socialista com toque “pequeno-burguês”, afirmou Víctor Raúl Haya de la Torre, fundador do Apra. Enquanto aquele debate trazia ideias e discursos sólidos, acompanhados de formas de ação social e política novas, o Peru de hoje está submergido no obscurantismo pragmático, vítima da cultura oligárquica dominante.

No início, em 1926, Mariátegui aderiu à ideia de formar uma frente única antiimperialista de trabalhadores e intelectuais, materializada na Apra, partido fundado com o fim de transformar o Peru oligárquico. Quando Haya de la Torre converteu a Apra em partido único a ser dirigido pela classe média e orientado pelo modelo democrático-burguês, Mariátegui percebe o perigo e rompe, em abril de 1928. Para Mariátegui, um marxista heterodoxo, o socialismo peruano tinha que ser dirigido pela classe operária, tendo como principal aliado o campesinato indígena. Este, em sua forma de vida, reproduz ''os elementos práticos do socialismo'' que a opressão servil feudal não havia destruído, tampouco superado. Daí que, o fim do feudalismo e do centralismo burocrático do Estado oligárquico constituíam tarefas políticas de primeira ordem. Logo, “a questão indígena começa da nossa economia [e tem] suas raízes no regime de propriedade da terra”, dizia Mariátegui.

Presente

As insurreições que os indígenas amazônicos do Peru protagonizam desde meados de 2008 são lideradas pela Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana (Aidesep). Para seu presidente, Alberto Pizango, além de resistir aos decretos de García, a luta é em defesa de um modelo de vida que a extração de gás e petróleo, o corte da madeira e a degradação de rios em busca de ouro está destruindo. Ele se refere à milenar economia indígena amazônica, de caráter predominantemente comunitário e tradicional, que tem resistido ao maior embargo histórico – o desprezo e o esquecimento – e que por isso mesmo mostra a vigência de sua eficácia e funcionalidade para a vida dos povoados.

O regime de propriedade da terra, por outro lado, é mais que uma mera expressão jurídica, um título de propriedade. É o conjunto de mecanismos políticos que garantem a integridade da posse. Esses mecanismos compreendem as formas de uso da terra, do usufruto das riquezas que ali se encontram e que dali se extraem e do poder de decisão que têm seus verdadeiros proprietários. Esses mecanismos estruturam o poder que têm as comunidades, mas podem ser atacados pelas pressões adversas e externas de outros grupos econômicos e/ou do próprio Estado burocrático centralista. É essa estrutura de poder autônomo e comunal dos indígenas amazônicos que o governo aprista desconhece e busca desmantelar.

Anacrônico

Quando o presidente responde que ''as terras da Amazônia são de todos os peruanos e não de um pequeno grupo que vive ali” e que “o Peru não é uma terra de ninguém”, mostra uma atitude que relembra a dos civilistas dos anos 1920. Sua mentalidade é a-histórica, pois desconhece que em cada região do território nacional habitam, vivem e se reproduzem grupos concretos de peruanos que se relacionam social e economicamente entre si e com o meio ambiente. Ninguém melhor que os indígenas para compreender o significado, apreciar o potencial e defender a integridade do habitat amazônico onde sobrevivem por séculos. É algo que um peruano de Tacna ou de Chacarilla (distrito limenho onde mora García) jamais poderia imaginar. Para o presidente, parece que os indígenas amazônicos são seres sem história, que podem ser ignorados e apagados sem escrúpulo.

Ele encobre a verdade sobre o atual conflito. Se é como diz, se os indígenas são ''egoístas'', quem são os “bondosos”? A mão invisível do mercado sempre teve um rosto visível: a dos grupos sociais e econômicos poderosos. Quem são esses grupos que, segundo o presidente, procuram o “interesse nacional” na região amazônica? As transnacionais do petróleo, etanol e gás, as madeireiras, as mineradoras, as empresas de alimentos e os laboratórios químicos? Com a luta pela anulação dos decretos, os indígenas amazônicos revelam os interesses corporativos e sua vocação destrutiva tanto das formas sociais de vida amazônica como dos recursos naturais ali localizados. Quem são, então, os “egoístas”?

Desrespeito à lei

A resposta do Apra recorda também o gamonalismo do século XX, um sistema de dominação social e política que se baseou no divisionismo territorial herdado do vice-reinado espanhol e se reproduziu com o apoio do centralismo burocrático do Estado oligárquico. O gamonalismo precede o Estado Nacional moderno porque desaprecia suas próprias leis quando estas são adversas aos interesses que representa. Quando os indígenas amazônicos acusam o governo aprista de violar a Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os povos indígenas (número 169) e editar decretos supremos inconstitucionais, põem em evidência o gamonalismo de García.

Mas não apenas isso. A Apra parece “[nutrir-se] do mais envelhecido repertório de ideias imperialistas”, diria Mariátegui. Seu desdém em relação aos indígenas, a quem criminaliza e persegue, por exercerem o direito constitucional de protestar em defesa da soberania nacional, assemelha-se àquele “conceito das raças inferiores [que] serviu ao Ocidente branco para sua obra de expansão e conquista”, agregaria Mariátegui.

Socialismo prático

Consequentemente, a questão dos indígenas amazônicos trata do presente e do futuro do Peru e as teses socialistas de Mariátegui têm vigência estratégica. “[Não] nos contentemos em reivindicar [e outorgar] o direito do indígena à educação, à cultura, ao progresso, ao amor e ao céu. Comecemos por reivindicar, categoricamente, seu direito à terra”.

A sobrevivência da comunidade e dos elementos de socialismo prático na agricultura e na vida dos indígenas, hoje multiplicadas em diversas formas em todo país, são elementos concretos de uma alternativa original que não será imitação, mas criação heroica das lutas do povo peruano, excluído pela oligarquia e espoliado pelo imperialismo. Sustentar o contrário, como faz a Apra e García, que afirmam que o problema dos indígenas amazônicos é de caráter local (região amazônica), moral (são “egoístas”), étnico (são “caipiras”) e policial (são “criminosos”), é argumentar a favor do status quo e opor-se à historia e à possibilidade que tem o Peru de transformar-se em uma nação inclusiva, democrática, participativa, coletiva e solidária.

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