sábado, 15 de agosto de 2009

Paul Krugman: A crise de 2008 e a economia da depressão


Leda Paulani
Jornal de Resenhas

Em linguagem envolvente, cheia de metáforas e fabulazinhas, mas apenas em aparência acessível aos não iniciados, o laureado Paul Krugman repassa as últimas décadas da história capitalista em busca de culpados para a crise de hoje e para as anteriores. Sedução literária à parte, a história de Krugman contém lapsos formidáveis. O “lapso” maior é que Krugman dispensa em sua história certos personagens da economia política internacional, a questão do poder e da hegemonia, o caráter hierárquico do sistema monetário mundial.

A narrativa transcorre como uma história de Agatha Christie. O autor repete, capítulo a capítulo, as mesmas indagações sobre as causas das crises que se imaginou um dia terem sido superadas. Não deveríamos saber o bastante, depois de Keynes e Friedman, para evitar que acontecessem novamente depressões como a de 1930? Por que não percebemos o alerta deflagrado pela letargia japonesa nos anos 1990 e pela crise asiática há mais de uma década? Por que deixamos a praga nos infectar de novo?

Candidatos a culpados

No decorrer do livro surgem vários candidatos a culpados, logo declarados inocentes. O populismo macroeconômico de México e Argentina em 1994/1995? Mas, na época, essas políticas eram bem-vistas e saudadas pelo FMI. O sistema blindado dos keiretsus e a economia de bolhas do Japão? Mas tinha sido a perspectiva de longo prazo propiciada pela arquitetura dos conglomerados japoneses que fizera o país se tornar a segunda economia do mundo e rivalizar com os próprios EUA; além disso, mesmo com a reação do governo após o estouro da bolha imobiliária, aumentando gastos e bombeando US$ 500 bilhões para os bancos, a economia continuou prostrada. O capitalismo de compadres de Tailândia, Coréia & Cia?

Mas esse sistema funcionou bem durante 35 anos e, ademais, em 1997, a Indonésia, o aluno bem comportado dos investidores, sucumbiu assim mesmo à crise. O grande déficit orçamentário do Brasil do início de 1999? Mas ele era conseqüência da própria crise e da necessidade de sossegar os mercados com uma taxa de juros de 50% ao ano. George Soros e seus fundos especulativos, levando à lona a moeda inglesa e depois as moedas asiáticas? Mas Soros acabou por prestar um favor à Inglaterra em 1992, recuperando a competitividade de sua economia e, quanto aos asiáticos, as fugas de capital em cadeia que ocorreram em 1997 foram protagonizadas, em boa medida, pelos próprios cidadãos desses países...

Em linguagem envolvente, cheia de metáforas e fabulazinhas, mas apenas em aparência acessível aos não iniciados, o laureado Paul Krugman repassa as últimas décadas da história capitalista em busca de culpados para a crise de hoje e para as anteriores. Se a crise é a do mercado acionário americano em 2000/2001, um dos principais suspeitos é o motorista, vale dizer, o Federal Reserve. Alan Greenspan teria agido como o pai que repreende os filhos adolescentes pelos excessos durante a festa, mas não tira as bebidas da sala, mantendo-se em alerta para funcionar como o motorista sóbrio da garotada.

Apesar da famosa referência à “exuberância irracional”, o ex-presidente do Fed não elevou os juros para refrear o entusiasmo, sequer procurou impor exigências de margem aos investidores, quando os negócios ficaram mais arriscados. Simplesmente aguardou o estouro da bolha, para depois arrumar a bagunça e, ao arrumá-la, propiciou a formação da bolha imobiliária, justo o detonador da crise atual.

“Especulador do mal”

Embora detendo uma marca única entre os presidentes de bancos centrais – a formação, durante seu mandato, não de uma, mas de duas enormes bolhas de ativos –, Greenspan não é o vilão solitário da história contada por Krugman. Os fundos de hedge e sua capacidade de orquestrar, mundo afora, ataques contra vários tipos de ativos financeiros também se enquadram no figurino. Encarnando a figura do “especulador do mal”, acabam por fazer jus ao imaginário popular das teorias conspiratórias, segundo as quais pequenos grupos conseguem afetar o valor das moedas e o destino de economias inteiras, mesmo de médio porte.

Por fim, quando chega à crise de hoje (o livro atualiza obra escrita em 1999), Krugman não escapa muito dos vilões que a própria mídia já se cansou de acusar: o crescimento do “sistema bancário sombra”, com sua incrível capacidade de alavancar recursos, e a inexistência, sobre sua atuação, de qualquer tipo de regulação, como a que normalmente incide sobre o sistema bancário tradicional. O que diferenciaria esta crise das anteriores, incluindo a dos anos 1930, consistiria, digamos assim, em sua escala, “soma [que seria] de todos os medos”: o estouro da bolha de imóveis, a onda de corridas bancárias, a armadilha da liquidez e, por último, a ruptura dos fluxos internacionais de capital, com a sucessão de crises cambiais.

Sedução literária à parte, a história de Krugman contém lapsos formidáveis, impossíveis de creditar, dada a estatura do economista, a eventual deficiência de formação e/ou análise. Por exemplo, quando se refere à brutal elevação dos juros promovida por Paul Volcker ao final dos anos 1970, repete a velha arenga de que isso foi para conter a ameaça inflacionária americana, sem mencionar a necessidade de fortalecer o dólar e preservar seu papel hegemônico, então em risco mesmo dentro do FMI.

Outro exemplo de “cochilo”, ainda mais gritante, mas ainda assim incapaz de acordá-lo, é que não existe, em livro de mais de duzentas páginas, em que conta espaço substantivo a análise da economia japonesa, uma menção sequer ao Acordo do Plaza de 1985, por cujo meio meteram os EUA, goela abaixo do Japão, uma valorização do iene que durou uma década, contribuindo decisivamente para o torpor em que mergulhou a economia da ilha. De passagem, Krugman diz apenas que o valor do iene disparara “misteriosamente”... O texto, aliás, é coalhado de orações do naipe: “de repente, tudo voltou a dar errado”, “miraculosamente os mercados voltaram a subir” etc.

O “lapso” maior é que Krugman dispensa em sua história certos personagens da economia política internacional, a questão do poder e da hegemonia, o caráter hierárquico do sistema monetário mundial, e acaba tratando os EUA como um país qualquer, que teria uma moeda como qualquer outro. Por isso, pode dizer tranquilamente que é a combinação de câmbio flutuante com liberdade para os fluxos de capital que tem permitido à América manter a discricionariedade em sua política monetária e empurrar o crescimento, ignorando que isso só é possível porque detém o monopólio de emissão do dinheiro mundial.

Por isso pode afirmar (singela ou cinicamente?) que as causas da bolha acionária que estourou ao final de 2000 foram o otimismo sobre o potencial de lucro das novas tecnologias e a crença de que os dias de graves recessões pertenciam ao passado, ignorando o fato de que, depois dos desastres com os emergentes, os mercados financeiros americanos foram o refúgio certo para os capitais ciganos que rondam o planeta à caça das melhores oportunidades de valorização. Em suma, a visão sistêmica do funcionamento da economia global está “misteriosamente” ausente de sua narrativa, o que, no entanto, é absolutamente coerente com alguém que, censurando embora o Consenso de Washington e suas políticas contracionistas, critica os controles de capital e declara, com alívio, que vivemos hoje num mundo que, suspeitando das intervenções governamentais, reaprendeu as virtudes do livre mercado.

Nenhum comentário: