terça-feira, 6 de abril de 2010

Chile: Os novos caminhos da democracia

Fernando de la Cuadra
ALAI

O triunfo da coalizão de centro-direita no passado 17 de janeiro rompeu com uma saga de 20 anos de governos da Concertación de Partidos por la Democracia (CPD), os quais inauguraram em 1990 –sob a presidência de Patricio Aylwin- um longo ciclo de estabilidade institucional, crescimento econômico e consolidação do regime democrático no Chile. Porém, apesar de todos os sucessos que possam ser atribuídos a este conglomerado, diversos fatores confluiriam para assestar uma dura derrota eleitoral, cujos desdobramentos ainda estão em processo de evolução e maduração.

A fragilidade da corrida presidencial da Concertación começou na hora de escolher o competidor que representaria a situação. Ungido, a partir de primarias decididas praticamente nos bastidores da política, Eduardo Frei acabou sucumbindo, entre outros fatores, por representar “mais do mesmo”, num momento em que o projeto concertacionista estava esgotado nos termos em que vinha sendo construído nos últimos anos. Precisamente, um sintoma desta fadiga interna foi a falta de unidade, indisciplina e finalmente, a fragmentação que experimentaram, numa seqüência crescente, a maioria dos partidos que conformavam o pacto. [1]

Por esse e outros motivos, muitos analistas têm atribuído à própria Concertación a principal responsabilidade pela derrota nas urnas e praticamente tornou-se um lugar comum dizer que Piñera e sua aliança de direita não ganharam as eleições, mas que foi o pacto governista que perdeu sua opção de um quinto mandato pelos erros cometidos e acumulados nestas duas décadas no poder.

Ao analisar as cifras das duas eleições anteriores pode-se apreciar claramente que a aliança governista somente consegue ganhar os candidatos da centro-direita por uma margem muito estreita de votos.

No primeiro turno o candidato da situação Ricardo Lagos, obteve pouco mais de 30 mil votos sobre o concorrente do centro-direita Joaquin Lavin. Em termos de porcentagem a diferença entre eles é quase insignificante (0,45%). Depois em terceiro lugar aparece a aspirante do Partido Comunista, Gladys Marín com um 3,19%, seguida de outros três candidatos com votação inexpressiva.

Já no segundo turno - com o apoio do Partido Comunista e de eleitores independentes que aderiram à continuidade do governo – o socialista Ricardo Lagos superou ao seu adversário da direita em uma estreita cifra de 2,62%. Também é possível apreciar que mais de 120 mil eleitores compareceram nas urnas neste segundo turno, estimulados pela acirrada disputa que se deflagrou a partir dos resultados do primeiro turno.

Já no ano de 2005, uma direita mais liberal representada por Piñera decidiu levar um candidato próprio no primeiro turno, para contrastar com Lavín que assumiu com melhor disposição as bandeiras de uma direita ainda vinculada à herança do regime militar e do chamado Pinochetismo. Somadas ambas as candidaturas (48,64%), elas superavam no primeiro turno à candidata da Concertación, situação que foi contornada no segundo turno, quando Michelle Bachelet não somente obteve o apoio dos eleitores da esquerda, mas também de uma pequena parcela de independentes que tinham votado por Lavin e decidiram não ratificar seu sufrágio com o concorrente do centro-direita. De fato, em votos absolutos, Sebastián Piñera obteve 140 mil votos menos no segundo turno se comparado com a soma de adesões que conseguiram entre ele e Lavin no primeiro turno.

Com efeito, um exame menos catastrofista destas eleições nos levará necessariamente a concluir que tanto no ano 1999, como depois em 2005, o triunfo da Concertacion sempre se alcançou no segundo turno, sendo que no primeiro turno a direita conseguiu quase a mesma quantidade de votos ou –como em 2005- superou em votos absolutos à candidatura oficialista.

Crônica de uma derrota anunciada

A partir da análise pontual destes números não deixa de ser surpreendente a espécie de autoflagelação que se verifica dentro do conglomerado ainda governista logo após da derrota de Eduardo Frei em janeiro passado. Tinha-se a impressão de que o calamitoso resultado era improvável e que se considerava o apoio da cidadania incondicional, depositado durante 20 anos de uma administração de sucesso incontestável. Nesta leitura parecia que este pacto partidário vencera todas as eleições anteriores com muita folga, o que à luz dos dados expostos resulta uma inverdade. Em outras palavras, o declínio da Concertación em termos eleitorais não é somente dos últimos dois anos. Ele teve seu inicio em fins dos anos noventa, quando os primeiros sinais de corrupção, desunião, corporativismo, favoritismo, fisiologismo, etc., juntaram-se a uma crise do projeto do progressismo social e de reformas políticas (eliminação do sistema binominal, convocação de uma Assembléia Constituinte). Estes elementos já desde um bom tempo foram contaminando as arenas da prática política dos partidos da base aliada. [2]

Tampouco foram resolvidas outras aspirações de setores representativos da população, tais como reformas laborais, criação de uma Administradora de Fundos da Previdência (AFP) estatal, redução ou eliminação da cobrança dos 7% referente ao sistema de saúde e descontado das aposentadorias e o ressarcimento da “divida histórica” do Estado para com os professores do ensino básico e médio. Da mesma forma, questões como a reforma tributaria visando aumentar o imposto de 17 para 25% de empresas de primeira categoria ou a renegociação de dividas hipotecarias também ficaram no papel e acabaram por gerar um sentimento de descontentamento no mundo popular, onde o governo e os partidos do pacto tinham sua base de apoio.

Por sua vez, o próprio sistema binominal ainda vigente no Chile permitiu a construção de um tipo de regime de competição eleitoral de caráter plesbiscitário onde se naturalizou que partidos como o Comunista ficavam sem representação no Congresso.[3] Como sabemos, a tendência desde 1990 foi a constituição de dois blocos: um bloco da centro-esquerda representado pela Concertación e um bloco da centro-direita representada pela Alianza por Chile. E, portanto nestes 20 anos de vida democrática as eleições presidenciais e legislativas sempre foram marcadas por esta divisória entre duas forças equilibradas. Até o momento o pendulo inclinava-se levemente para a centro-esquerda. Na jornada eleitoral de janeiro o pendulo finalmente inclinou-se para o outro bloco, o que como já alertamos, não representa de modo algum um desenlace inesperado e imprevisível.

Nesse contexto, a candidatura de Eduardo Frei apareceu aos olhos dos eleitores como “mais do mesmo”, com o agravante de que Frei nunca conseguiu superar a fama de um político insípido com escassa capacidade de encantar os votantes. A situação se tornava bastante visível especialmente depois dos carismáticos presidentes Lagos e Bachelet que tiveram, com todos os problemas da Concertación, apoio popular surpreendente. Se a isso somamos as circunstancias de sua investidura como candidato governista, podemos compreender em parte, a emergência dentro das próprias fileiras socialistas, de três concorrentes, a saber, Jorge Arrate, Alejandro Navarro e Marco Enríquez-Ominami. Eles representavam cada um, a seu modo, o descontentamento dos militantes socialistas com a política de acordos de “cúpula” em que tinham incorrido as direções dos partidos integrantes da coalizão. Em diversos documentos críticos do papel do Partido Socialista se enfatiza que a concepção elitista e institucional dominante de política e poder, limitaram a perspectiva popular dos dirigentes socialistas, os quais desdenharam o contato com o povo e a mobilização social como um recurso fundamental para transformar a legalidade institucional herdada do período militar. Com efeito, a mobilização social era considerada “desnecessária” para a maioria dos lideres partidários já desde os primeiros governos deste conglomerado. [4]

Em palavras de um socialista, “a escolha dos partidos da Concertación por priorizar a política institucional não só marginalizou a mobilização popular como, também, levou à monopolização do espaço político pelos partidos. Ainda mais importante, estabeleceu-se esta forma particular de fazer política, caracterizada pela negociação entre os partidos.” Com isto, crio-se fatalmente um abismo entre os dirigentes e as bases partidárias. [5]

Especialmente significativa foi a irrupção de Marco Enríquez-Ominami, jovem deputado socialista que irrompeu na campanha com inusitada potencia. Mistura de galã de novela, cineasta e filósofo, com um visual moderno e idéias contraditórias sobre economia e sociedade. Ele finalmente interpretou os sentimentos de revolta dos jovens ante os arranjos partidários para escolher o candidato da situação e, com o devir do tempo, transformou-se na principal figura critica da forma como a Concertación estava conduzindo os destinos do país, com ênfase nos temas da exclusão de setores da cidadania tanto dos benefícios do crescimento econômico quanto da participação cidadã em matérias de interesse público. Por este e outros motivos, Enriquez-Ominami se posicionou com espetacular velocidade nas pesquisas de intenção de votos, passando de um 8% no inicio da campanha até chegar a um 20,13% do total de sufrágios na eleição de dezembro de 2009.

Depois do primeiro turno, alguns políticos concertacionistas calculavam que se os votos de Enriquez-Ominami e de Arrate fossem somados à candidatura de Frei no segundo turno, a centro-direita continuaria com o fardo de não superar os 50% da votação. No entanto, esta previsão não se confirma, pois como se poderá notar no seguinte quadro, pouco mais de um terço dos votantes de Enriquez-Ominami se inclinaram pelo representante da centro-direita no segundo turno.

Embora, as conseqüências do triunfo de Piñera representem, para certa esquerda radical, a volta do Pinochetismo [6], resulta bastante manifesto que mesmo que esta possa carregar alguns remanescentes autoritários e conservadores do regime militar (especialmente nos temas éticos e morais), por diversos motivos históricos e de contexto, esta direita dificilmente será a mesma que governou com mão de ferro durante o Antigo Regime de Pinochet. Até porque Piñera esta longe de ser unanimidade nacional e é evidente que ele não deverá contar com o apoio incondicional do país. Efetivamente, dos 12 milhões de eleitores potenciais, 5 milhões não foram às urnas no dia 17 de janeiro (3,8 milhões não estão inscritos e 1,2 milhões dos inscritos se abstiveram).[7] Ou seja, considerando os votos direcionados para Eduardo Frei, 8,4 milhões de eleitores não votaram pelo novo presidente.

Bacheletismo sem Bachelet

A Presidenta Michelle Bachelet culminou seu mandato com o grande mérito e façanha de manter uma alta aprovação por parte da cidadania (84%).[8] Sua imagem só sofreu pequenas arranhões na sua “capacidade para enfrentar situações de crise” que caiu de um 86 para um 83%. Com relação aos atributos da Presidenta, Bachelet alcançou -depois do terremoto- um 96% de aprovação ante a pergunta que indagava sobre se seria ela “querida pelos chilenos”. O interessante desta avaliação com resultado tão positivo, é que ela se produz ao mesmo tempo em que muitos membros do seu gabinete eram fortemente questionados pelo papel “omisso” e indolente frente ao flagelo humanitário causado pelo recente terremoto.

Acreditamos que esta impressionante aceitação que acompanhou a Bachelet durante quase todo seu período de governo, se deve em parte ao esforço da mandatária em manter a sintonia com a população, através de um estilo simples e afetivo. Alguns analistas inclusive têm chamado este fenômeno de “carinhocracia”. A rigor, Bachelet nunca se apresentou como um animal político ou como uma liderança disposta a dirimir os conflitos entre os partidos da base aliada. Tampouco se envolveu diretamente em todos os problemas do seu governo, para tal feito acionava aos seus ministros. Ela foi uma figura carismática, que optando por afastar-se das arenas do comando propriamente político, preferiu concentrar-se na zona da simpatia e o carinho pessoal. Em bastante medida sua imagem foi “blindada” por uma barreira de assessores que cuidaram com zelo sua condição de ex-presa política, exilada, mulher esforçada, mãe exemplar, ressaltando o trabalho de médica pediatra dedicada à saúde pública das crianças.

No entanto, ainda que não tenha se realizado uma avaliação pormenorizada do papel desempenhado por Bachelet na derrota do conglomerado governista, alguns especialistas insistem em que ela foi uma das principais responsáveis pelo fato de Eduardo Frei não cativar o eleitorado. Efetivamente, ela não acompanhou de perto a campanha do seu possível sucessor e o respaldo a esta candidatura -poucas semanas antes do segundo turno- foi ao que todo indica tardio e insuficiente.[9]

Como parte do processo de recomposição desta aliança, o nome de Bachelet aparece citado como um fator de unidade e força centrípeta para aglutinar novamente os setores rebeldes (díscolos). Fala-se de um Bacheletismo, como a grande aposta programática para as próximas eleições. [10] Porém, na realidade Bachelet nunca foi uma liderança com força política no interior do partido e capaz de gerar força aglutinadora em torno de um programa. Ela representou muito mais uma imagem de abnegação, honestidade e simpatia do que uma grande líder disposta a tomar as rédeas de uma aliança suprapartidária com idoneidade para transformar as amarras e entraves deixados pela herança econômica e institucional do regime autoritário. Enfim, Bachelet não conseguiu cumprir com algumas de suas promessas mais emblemáticas, tais como a modificação do sistema binominal, convocação de uma Assembléia Constituinte ou a implementação das reformas trabalhistas a favor dos assalariados. Certamente ela teve alguns momentos onde agiu como liderança, mas estes casos tópicos não foram a regra do seu mandato.

Nesse sentido um diagnóstico dessa ordem transforma-se num grande equívoco. Falar em Bacheletismo só leva a confusão quando não existe nem vontade do próprio líder para empreender tamanho projeto nem perfil necessário. Bachelet se destaca mais por ser uma figura alheia às disputas e acordos políticos, com pouca disposição a ter um papel central na restauração de uma Concertación que continua se esfacelando. O Bacheletismo é uma invenção sem futuro, uma figura retórica nascida no compasso do desespero e a desorientação.

Os vários terremotos que assolaram o Chile

Os inumeráveis acontecimentos que se precipitaram sobre o país a partir da trágica noite do sábado 27 de fevereiro – menos de duas semanas antes do fim de mandato de Michelle Bachelet - mudaram também de forma dramática o cenário futuro que se prospectava para o país. O foco das analises que em principio estavam colocadas na capacidade de Piñera para neutralizar aqueles setores mais “reacionários” que fazem parte do acordo e dar continuidade a muitas políticas sociais e culturais do período anterior, passou em pouco tempo a mudar de orientação.

As extraordinárias circunstancias em que se realizou o traspasso de poder – com uma forte replica minutos antes de começar o cerimonial – fez com que todos os discursos se centrassem num tema interpretado quase ao uníssono por todos os atores políticos e sociais presentes no Congresso nessa hora: a imediata e urgente reconstrução de Chile.

Efetivamente, o permanente deslocamento de Piñera e seus ministros até as zonas mais afeadas imprimiram um selo especial a seu governo, uma administração de terreno com um forte caráter emergencial tem sido o sinal destas primeiras semanas de mandato. A imagem de um país devastado pelo terremoto e posterior tsunami está em primeiro plano. Mas junto com a calamidade física apareceram como assombrações os estigmas da desigualdade e o desespero dos habitantes pobres das áreas mais atingidas.

Os estragos causados pelo terremoto deixaram à vista de todos, um país que parecia superado pelo advento do progresso e da modernidade. A crise humanitária –e diríamos até civilizatória- que se instalou no Chile depois da catástrofe deixou estupefactos a todos os que acompanharam as tristes cenas de saqueio de supermercados e lojas de eletrodomésticos.

As imagens veiculadas das “hordas bárbaras” que levavam tudo aquilo que encontravam, representaram um forte golpe na nossa auto-estima e identidade triunfalista, exacerbada nos últimos anos pela luminosidade ofuscante do consumo e a abundância ilimitada, assim como do país da América Latina que melhor vinha na rota do crescimento.

Por isso, é que não parece exagerado dizer que o terremoto que atingiu Chile não só removeu as entranhas da terra, mas também foi uma grande desgraça de contorno social, em que emergiram das profundezas do esquecimento e da invisibilidade, aquelas ingentes mazelas da pobreza, iniqüidade e exclusão que ainda não conseguimos resolver como qualquer sociedade moderna e organizada que acreditávamos ser. O país que acabava de ingressar com louvor ao grupo dos países da OCDE, mostrou para si mesmo e para o mundo que ainda tem um longo caminho que percorrer para ser parte com todos seus méritos do mundo “desenvolvido”. O terremoto desnudou um país com as casas de argila e madeira e expus o semblante triste dos condenados a viver na pobreza.

Ainda é muito cedo para realizar um diagnostico apurado dos avanços e fracassos do governo de Piñera, no entanto acreditamos que este monumental esforço de reconstrução do país pode ajudar ao recém empossado Presidente a enfrentar esta primeira etapa sem muitas críticas dado que por enquanto existe consenso entre as diversas forças políticas a respeito de que é preciso abordar primeiro a tarefa de recuperar o fôlego e deixar as desavenças para depois. Certamente neste processo, o governo vai ter o apoio decidido dos agentes econômicos e das corporações produtivas que serão as principais responsáveis de empreender as ações para reconstruir o país. Tudo isso vai gerar grande demanda de emprego e estimulará também a reativação das pequenas e medias empresas. [11]

Nesse sentido o desastre que se deflagrou sobre o país pode representar uma grande oportunidade para que o governo da centro-direita continue afinando seu discurso em torno de um amplo projeto de unidade nacional e que valorize o desenvolvimento das pessoas. Isso dependerá da capacidade que tenha o executivo, e em especial o Presidente, para impulsionar um modelo que imprima continuidade a uma política social ativa herdada da administração Bachelet, com ênfase no emprego com salário digno e melhores condições de vida para todos os cidadãos. Isto implica por certo convencer da assertividade desta política a aqueles setores mais reticentes do empresariado e da direita política que da sustentação ao governo. Porém, se consideramos a composição do próprio gabinete de Piñera esta aposta pode estar longe de ser levada pra frente e muito provavelmente não passa de uma declaração demagógica com a finalidade de capturar a adesão da cidadania neste primeiro período.

Um gabinete de gerentes e empresários

Efetivamente, tais apreensões não são gratuitas. Elas baseiam-se também no fato concreto de que o gabinete nomeado por Piñera esta composto fundamentalmente por pessoas provenientes do setor empresarial e que ocuparam cargos de gerenciamento nas suas respectivas companhias. A rigor, o primeiro gabinete de Piñera é constituído por 22 ministros em sua grande maioria engenheiros civis ou comerciais (67,67%); com estudos de Graduação na Pontifícia Universidade Católica de Chile (77, 27%) e de Pós-graduação em Universidades dos Estados Unidos (78,57%). Do grupo com Pós-graduação neste último país, uma parcela significativa especializou-se em Economia ou realizou um Master in Business Administration (MBA) em Chicago.

A condição de empresário de Piñera -que também possui a maior fortuna do país calculada em mais de 2 bilhões de dólares- continuará sendo um retrato evidente da contradição entre a função de serviço público e os interesses privados. Como já é conhecido, o atual presidente era até pouco tempo o principal acionista de Linha Aérea Nacional (LAN), da Administradora dos Cartões de Crédito, de um canal de televisão (Chilevisión), da equipe de futebol mais popular de Chile (Colo-Colo), de empresas construtoras e imobiliárias, de mineração, financeiras, Clínicas privadas, etc. Antes de assumir, Piñera se comprometeu em desfazer-se das suas empresas e ações, porém depois do terremoto ele foi dilatando a venda do último pacote acionário da companhia aérea, como também da estação televisiva e do clube de futebol. No caso da venda das ações de LAN Chile, um porta-voz de La Moneda atribuiu este atraso à empresa intermediaria da operação e assegurou que este não era um tema de governo. Mas esta empresa filtrou para a imprensa que a decisão de vender correspondia ao proprietário das ações, pois ele estava na expectativa de um melhor preço. No entanto, a fórmula que utilizou finalmente Piñera para vender suas ações lhe permitiu poupar uns 50 milhões de dólares em tributos. [12]

Situação comprometedora se dá também com as empresas construtoras que estão participando nas obras de reconstrução de prédios e reparação de estradas, pontes e portos, pois a maioria delas pertence a ex-parceiros ou amigos do presidente. Portanto, estamos frente ao fato que Sebastián Piñera é um eixo ou conexão importante de uma imensa rede de investidores em diversas áreas da economia, protagonistas do mundo empresarial e de negócios, que agora passaram a ter maior influência na esfera do governo. Este é um cenário no qual inevitavelmente se estreitaram ainda mais os laços entre os interesses privados das corporações e a responsabilidade do setor público de propiciar o “bem comum”, aprofundando o nocivo fenômeno conhecido como privatização do Estado.

Nessa perspectiva, Piñera poderia efetivamente transformar-se numa espécie de Berlusconi chileno, com todas as mazelas que isso representa. Ou pode ser também um estadista empenhado em acelerar o crescimento junto com sua preocupação com a justiça e a eqüidade social, tal e foi mencionado nas promessas de campanha.[13] Por enquanto suas credenciais o habilitam melhor para transformar-se no primeiro. No entanto, Piñera perfeitamente pode trilhar uma senda em que tente conciliar os interesses do empresariado (crescimento, lucro, estabilidade) com os objetivos e aspirações da maioria dos chilenos, especialmente dos mais vulneráveis.

Pensamos que isso também vai depender do contexto internacional e, especialmente, da convicção do alinhamento chileno com uma direita de base regional (Colômbia, México, Peru, Panamá, Honduras) confrontada com as experiências de governos ditos de esquerda que ressurgiram no continente durante a última década (Venezuela, Bolívia, Equador, Paraguai, Uruguai, Nicarágua, El Salvador).[14] A chegada de Piñera a La Moneda representa o fortalecimento desta recente guinada à direita no hemisfério, consolidando uma contra-tendência de caráter reativo que até agora defendia quase que isoladamente Álvaro Uribe, seu par colombiano. A nomeação do chanceler chileno (ex-gerente de uma grande loja de retail), não deixa muitas duvidas sobre os propósitos da nova administração em sua relação com o resto das nações: melhorar a inserção do país no mercado internacional, subscrever novos tratados de livre comercio e proteger os negócios dos empresários chilenos. A integração regional está definitivamente excluída das prioridades e agenda estratégica da política exterior do governo Piñera.

Considerações finais

Ante este cenário: Que podem fazer as forças da centro-esquerda ou “progressistas” para se apresentar como alternativa de governo nos próximos anos? Quem poderá assumir a difícil tarefa de reconstruir um programa para o país que seja capaz de seduzir novamente aos chilenos? Que significa neste momento impulsionar um projeto progressista, sobre que bases, com quais eixos programáticos, com que protagonistas? Certamente não temos a resposta mágica para estas interrogantes, mas nos atrevemos a sustentar que a centro-esquerda deve antes de tudo reinventar seu projeto popular-democrático e necessariamente surgirão as lideranças mais idôneas que possam impulsioná-lo.

Transcorrido um tempo prudente e necessário para uma analise menos dramática e catastrófica do resultado, o que se revela no horizonte político do longo prazo é a inevitável e –agregaria- saudável alternância do poder, que como sabemos é um requisito chave das regras do jogo democrático. Pelo mesmo, acreditamos que as coletividades partidárias que integram a Concertación não precisam rasgar vestiduras pensando que o mundo desaba a seu redor e tentar procurar explicações movidas pelo pânico. A centro-esquerda deve sim fazer uma reflexão autocrítica, que permita pensar novas práticas, uma nova ética e cultura política que defina e assuma os desafios futuros, junto com o esforço de reconstruir uma maioria política, social, cultural e eleitoral que aprendendo dos erros cometidos e diagnosticados, permita recuperar as bandeiras do progressismo (justiça social, equidade, direitos universais, participação) e devolver a soberania aos próprios sujeitos do desenvolvimento: os cidadãos.

NOTAS
[1] Desde o Partido Democrata Cristão se desprenderam um grupo de militantes –entre eles o Ex-presidente Adolfo Zaldivar- para formar o Partido Regionalista de los Independientes (PRI), com inclinação mais conservadora. Também para a direita foi o desgarramento do Partido por la Democracia que resultou em um referente denominado “Chile Primero” Já no caso do Partido Socialista, teve três militantes emblemáticos que abandonaram suas fileiras pra construir uma alternativa mais “para a esquerda”. O primeiro foi Jorge Arrate que formo o “Nuevo Pacto Democrático y Popular”, junto com o partido Comunista e outros setores da esquerda. Seguidamente, o senador Alejandro Navarro formou o Movimiento Amplio Social (MAS), com o qual teve um abortado intento de candidatura presidencial e, por último, o deputado Marco Enríquez-Ominami que se apresentou como candidato independente à presidência.
[2] Neste sentido, resultam esclarecedores os artigos quase proféticos escritos pelo saudoso Antonio Cortés Terzi em meados dos anos noventa, desde sua importante tribuna do Centro de Estudos Sociais Avance.
[3] Nesta última contenda, o Partido Comunista fez um pacto instrumental com a Concertação o qual lhe permitiu eleger três deputados, feito inédito depois de 20 anos desde a redemocratização do país.
[4] Esta perspectiva foi explorada em nosso artigo “Democracia, conflito social e participação: a rebelião dos jovens no Chile”, publicado em Política Democrática, Ano VI, N° 17, 2007, pp. 125-135.
[5] Leandro Vergara-Camus, “Partido socialista chileno: adeus ao povo”, em: Revista Lutas Sociais, N° 11/12, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais (PUC-SP), São Paulo, 2004.
[6] Algumas considerações que circularam na mídia atribuíam este vínculo do novo governo com o Pinochetismo a uma frase que apareceu entre certos grupos que momentos depois da vitória de Piñera celebravam nas ruas de Chile ao grito de: “Pinochet, Pinochet, este triunfo es para usted.”
[7] Se comparadas também as cifras dos três momentos eleitorais (1999, 2005 e 2009) se poderá concluir que o número de eleitores tem diminuído durante a última década, ainda que a massa de potenciais eleitores aumentasse por uma simples razão demográfica: cresceu o número de votantes maiores de 18 anos.
[8] Pesquisa Adimark, divulgada no dia 09 de março de 2010.
[9] Também se pode argumentar que sendo Bachelet a Presidenta de “todos os chilenos”, não correspondia a sua função de estadista envolver-se na campanha de uma das partes em competição.
[10] Construção inspirada na matriz populista da região, que teve sua grande expressão no Peronismo em Argentina e o Varguismo no Brasil. Atualmente, neste último país tornou-se comum falar em “Lulismo”. Respeito deste debate pode-se consultar o artigo de André Singer “Raízes sociais e ideológicas do Lulismo”, em: Novos Estudos, n° 85, novembro 2009, CEBRAP, São Paulo, pp. 83-102.
[11] Calcula-se que o país vai ter que fazer investimentos da ordem dos 30 bilhões de dólares para recompor a malha ferroviária, as estradas, pontes, portos, hospitais, escolas, açudes e centenas de construções e moradias que foram abaladas pelo terremoto. É um esforço significativo que deverá gerar milhares de postos de trabalho somente na recuperação da infraestrutura e das obras públicas destruídas.
[12] O conflito de interesses entre a espera pública e a privada surge novamente por quanto o Diretor do Servicio de Impuestos Internos (Receita) é um funcionário designado pelo presidente. Tal como afirma Manuel Délano, “por vir do mundo dos negócios, muitos dos colaboradores mais próximos de Piñera podem entrar numa contradição profunda quando lhes corresponda fiscalizar ou tomar decisões em assuntos em que possam estar envolvidas suas empresas.” Em: “Gobierno de empresarios en La Moneda”, Jornal El País, Internacional, 29/03/2010.
[13] Entre tais compromissos podem se salientar: trabalhos dignos (um milhão de novos empregos; subsidio ao trabalho para pessoas jovens ou com discapacidade, respeito ao direito dos trabalhadores e fim dos abusos das empresas, fortalecimento dos sindicatos e negociação coletiva, capacitação permanente, etc.); proteção social eficiente e acolhedora (subsidio desemprego e hipotecário); superação da pobreza; educação de qualidade, saúde preventiva e de bom trato, apoio às mulheres e terceira idade; novo tratamento pra as pequenas e medias empresas; cidades amáveis e moradia digna, descentralização, preocupação com o meio ambiente; reencontro com os povos originários, defesa dos consumidores, etc. Ver documento: “Programa de Gobierno para el cambio, el futuro y la esperanza. Chile 2010-2014”, 2009.
[14] Realizamos esta classificação, sem aprofundar no mérito da discussão a respeito do que significa ser na atualidade de direita ou de esquerda (conservador ou progressista) no mundo e na América Latina, o qual poderia ser matéria para um outro artigo. Para alguns, a própria nomenclatura dualista esquerda/direita já se encontra obsoleta e não serve para analisar a complexidade das sociedades contemporâneas.

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