terça-feira, 11 de maio de 2010

A diferença entre a teoria e a prática do neoliberalismo


Francisco de Oliveira
Jornal de Resenhas

O novo livro de David Harvey (O Neoliberalismo: história e implicações) não tem a originalidade nem a importância de seu clássico A condição pós-moderna, mas é uma oportuna contribuição para a discussão do neoliberalismo, que está longe de ter sido esgotada, já que esse “malfeitor” deixou suas seqüelas por todo o orbe. Diga-se logo, adiantando o argumento, que o neoliberalismo é o vitorioso nesta quadra histórica, e essa vitória se mostra precisamente onde políticas pretensamente antineoliberais se afirmam: que é o caso da Bolsa-Família, no Brasil.

Não há uma implicância com o badalado programa de Lula da Silva; entre as melhores discussões de Harvey está a de precisamente diagnosticar o neoliberalismo como um ataque aos direitos dos trabalhadores, e, ao contrário do que se pensa, as políticas tipo Bolsa-Família são parte da estratégia neoliberal, na formulação focalizada das políticas sociais, sempre encaradas desde a hegemonia do neoliberalismo como respostas às carências, e não como direitos.

Harvey reconstitui a trajetória “intelectual” do neoliberalismo, desde o famoso – e famigerado, de meu ponto de vista – grupo do Mont Pélérin, reunido sob a batuta do celerado Friedrich Hayek, com a assistência de Milton Friedman, o consultor de Pinochet, onde o programa neoliberal foi testado em escala nacional já em 1973. Friedman tinha uma anedota sinistra para ilustrar a terapia de choque neoliberal: dizia , um aluno tardio e cruel de Maquiavel, que a um cachorro se lhe pode cortar o rabo de duas maneiras: de uma vez ou em pedacinhos. Ele aconselhou o ditador chileno a fazê-lo de uma vez, pois doeria – ao cão – apenas uma vez. O cão era a... população chilena. Não é a primeira vez, nem a última, que os países da periferia do capitalismo serão os “laboratórios” das experiências cruéis das pretensas teorias “universais”: a Inglaterra de David Ricardo, em nome do liberalismo que nunca praticou, pois a Royal Navy era mais eficiente do que qualquer regulamento burocrático-legal, destruiu a importante indústria têxtil indiana, para dar lugar aos produtos da nascente indústria inglesa correspondente.

Forças da história

Mas Harvey não se deixa enganar: nas pistas de Marx, ele sabe que as idéias somente se transformam em forças da história quando são apropriadas por alguma classe social. Por isso, não foi a excelência das idéias dos celerados do Mont Pelérin quem decretou o sucesso do neoliberalismo: foi o poder das potências centrais, leia-se sobretudo os EUA, quem impôs a desregulamentação dos mercados, sobretudo dos mercados de capitais e financeiros, a privatização das empresas estatais, a vampirização dos orçamentos públicos (lembram-se do nosso Bresser Pereira com a securitização das finanças estatais brasileiras?), a transformação dos direitos em carências – zebras no zoológico também podem ter carências, mas salvo no sarcástico e trágico A revolução dos bichos, de Orwell, nunca se viu animais pleitearem “direitos”.

Nessa linha, Harvey mostra a debilidade teórica do neoliberalismo, a diferença entre sua teoria e sua prática, até o paradoxo de que para criar um mercado livre, é preciso muita intervenção do Estado. Relembre-se a “dama de ferro” com sua pesada intervenção nos sindicatos ingleses, e com os “presentes” das privatizações, e o período FHC que começa, precisamente, imitando a Tatcher, com uma queda de braço com o sindicato dos petroleiros, e vai em seguida criar o Proer, para em nome do mercado livre, livrar o sistema bancário da bancarrota. Seguindo a velha história do seu irmão mais velho, o liberalismo, muito Estado para criar os mercados “livres”. Muita cavalaria e Forte Apache para dizimar os peles-vermelhas e criar... Las Vegas.

Ao contrário da quase totalidade dos economistas e analistas da crise atual, Harvey – na companhia de um Chesnais, por exemplo – não cai na esparrela de que a crise que aí está, ainda não debelada – o desemprego nos EUA atingiu o nível máximo nos últimos doze anos –, é de natureza financeira. Corretamente, ele a localiza no sistema produtivo, e sobretudo na concorrência inter-capitalista. Tendo a Europa (que foi sua poderosa concorrente até a entrada na União Européia dos “cavalos de Tróia” da Europa Central, Polônia, República Tcheca) se subalternizado outra vez, a concorrência inter-capitalista deslocou-se para o Extremo Oriente, com a Índia e a China revolucionando a produção capitalista mundial e seu conseqüente comércio.

Harvey dedica um proveitoso capítulo à análise recente da evolução chinesa, desde os dias de Deng Hsiao Ping, para ele um dos construtores – ao largo das teorias de Hayek – do neoliberalismo. É um capítulo que deveria ser lido por todos que se arvoram em formuladores de política para os países da periferia. Recado direto para o Brasil: não tentemos ser “chineses” porque isso quer dizer 5 dólares de salário por dia, sem direitos sociais, com forte discriminação contra as mulheres, trabalho infantil sem disfarces, privilégios quase inimagináveis para os altos executivos, subsídios governamentais astronômicos para os capitais estrangeiros, e last but not the least, investimentos em ciência e tecnologia necessários exatamente para colocar o imenso exército de reserva em condições de produção competitiva à escala mundial. A China não se especializa em commodities, como nós estamos fazendo, mas numa combinação de mão-de-obra barata e salto tecnológico formidável.

Juros negativos

É daí que vem o abalo financeiro que os EUA vem tentando consertar, desde o celerado Bush até o hoje já execrado (nisso se esconde o preconceito de raça que a avalanche de votos ocultou) Obama, pois os juros negativos que o FED praticou vem da poderosa afluência das reservas chinesas aplicada nos títulos do Tesouro norte-americano. Por isso, aviso aos navegantes que podem se seduzir por um novo “maoísmo sem Mao”: a China não deseja desbancar os EUA, nem sequer levar a bancarrota norte-americana até os gringos se ajoelharem ante a nova luz que vem do Oriente.

A China sofre de um excesso de poupança, que, se transformada em investimento interno, pode fazer ruir a economia chinesa, e não a economia norte-americana. Em marxismo clássico, trata-se de uma super-acumulação de capitais. O ajuste de contas virá algum dia, mas não na forma de uma nova guerra inter-imperialista. O livro de Harvey ajuda a iluminar esses cenários: comprem-no e leiam-no. Sobretudo os governantes brasileiros.

Pode ser que a editora considere o livro bem editado, mas a meu juízo e a meus olhos de leitor, a edição deixa a desejar: falta-lhe “orelha”, e o tipo da impressão e sua mancha sobre a página branca é, no mínimo, desconfortável. Será que numa próxima vez cuidarão melhor de um autor com a importância de Harvey?

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