segunda-feira, 31 de março de 2014

Mudanças climáticas devem fortalecer a extrema-direita

Renato Grandelle
O Globo

Relatório indica que perda de recursos naturais provocará migrações em massa da África para Europa

A chegada em massa de africanos na Europa racha o discurso do Velho Mundo: um estrato da sociedade defende políticas assistencialistas; outro ergue a bandeira da direita radical e hostil aos “invasores”. No Ártico, o derretimento das geleiras acirra a tensão entre as grandes potências mundiais, que cobiçam as novas rotas de navegação e a extração do petróleo. Milhões de pessoas deixarão o Leste da Ásia, constantemente inundado, e, no Brasil, nordestinos trocarão suas casas pelo Sudeste. Estes conflitos, entre tantos outros que já aparecem timidamente no cenário internacional, provocarão ainda mais embaraços nas próximas décadas. A explicação para tantos episódios caóticos é a mesma, as mudanças climáticas.

Divulgado neste domingo, o novo relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) dedica um capítulo inteiro à relação entre clima e segurança. Esta é a primeira vez que o órgão deu ênfase à ligação entre clima e crescimento da extrema-direita.

Segundo o IPCC, a temperatura global pode aumentar, no máximo, 2 graus Celsius para que o clima do planeta seja “administrável”. Mais do que isso, o homem perderia o controle sobre os fenômenos naturais. Hoje, no entanto, acredita-se que os termômetros devem chegar a mais de 4 graus Celsius até o fim do século. Com isso, aumenta a ocorrência de eventos climáticos extremos, que arrasam os recursos fundamentais para a economia de cada país: terras cultiváveis e água, principalmente.

A escassez acirra questões que já são sensíveis, alerta Suzana Kahn, vice-presidente do IPCC e professora da Coppe/UFRJ. O ambiente alterado aumentará o fosso entre as nações. Populações inteiras, que têm muito pouco a perder, vão se transformar em refugiados climáticos. Em um mundo já lotado, elas sempre serão recebidas com hostilidade. Criamos um barril de pólvora.

Confrontos pela água

Os eventos climáticos extremos atingirão com maior ferocidade os países em desenvolvimento, especialmente na região tropical. A desertificação africana já provoca o deslocamento das populações, que voltarão cada vez mais suas atenções para a Europa. Assustado com o assédio de suas ex-colônias, o Velho Mundo testemunha o crescimento dos militantes anti-imigração. Um exemplo é o referendo no mês passado na Suíça, em que a nação optou por permanecer fora da União Europeia. O resultado foi citado como um modelo por líderes da extrema-direita de países como Áustria, França e Itália. O Brasil pode ter sua própria onda migratória. A desertificação do sertão e do Leste da Amazônia levaria mais pessoas para as já saturadas capitais do Centro-Sul do país.

Coordenador de Mudanças Climáticas e Energia do WWF-Brasil, André Nahur concorda que a disputa por água e alimentos será uma das maiores motivações para os confrontos deste século. A queda da disponibilidade de água vai gerar um cenário de incerteza, destaca. O estresse hídrico pode ser visto em diferentes partes do mundo. O Leste da Ásia, cada vez mais sacudido por eventos extremos, como furacões, pode não ter a água necessária para abastecer sua população. Outro exemplo é a disputa, entre Rio e São Paulo, pela Bacia do Rio Paraíba do Sul.

Para Fábio Scarano, coautor do relatório do IPCC e vice-presidente sênior da Divisão da América da Conservação Internacional, a América Latina é uma das áreas vulneráveis aos confrontos protagonizados pela água: “Em nosso continente, a água é usada para energia, irrigação e saneamento nas cidades. À medida que o clima traz impacto à sua disponibilidade, as atividades econômicas correm risco e aumenta a competição pelos recursos naturais”.

Efeitos seguirão por décadas

O aquecimento global, no entanto, é festejado em regiões como o Norte da Rússia, onde a maior exposição ao Sol vai proporcionar mais áreas cultiváveis. Mas o derretimento do gelo vem acompanhado de polêmicas, como a maneira de explorar gás e mineração, entre outras riquezas pouco estudadas da região.

Durante a Conferência do Clima de Copenhague, em 2009, representantes do Conselho Circumpolar Inuit, da Groenlândia, denunciaram o aumento da presença militar naquele território. O degelo do Ártico também traz um conflito em potencial, alerta Suzana. Sem as geleiras, novas rotas de navegação estão sendo criadas, e o petróleo da região está atraindo as grandes potências. Mais uma disputa surge ali.

Mesmo que as emissões de carbono fossem interrompidas agora, o que sequer é cogitado, os efeitos das mudanças climáticas seguirão por décadas, inclusive a possibilidade de confrontos. Os mais vulneráveis às mudanças climáticas são os pobres, destaca Scarano. Então, os objetivos devem ser reduzir a miséria e, ao mesmo tempo, adaptar os ecossistemas.

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