quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

As ruas falam, mas a democracia avança pouco

Marco Aurélio Nogueira
Open Democracy

A participação no Brasil cresceu, mas até agora não se combinou com a elevação da qualidade da democracia, com um debate público mais consistente ou com o melhor funcionamento do sistema político.

A democracia não é somente um “método” para que se tomem decisões e um conjunto de regras sobre o modo como se governa uma comunidade política. É, também, um sistema de participação, que depende de cidadãos politicamente educados e tão bem organizados quanto possível. Fornece uma diretriz ético-política dedicada a promover o compartilhamento do poder político. Em termos normativos, é o conjunto dos cidadãos que governa, repartindo entre si responsabilidades e poderes.

Justamente por ser assim, a democracia tende a ser abalada quando cidadãos e organizações mudam de padrão, impulsionados por uma grande transformação social. É o que acontece hoje, nessa época de velocidade, tecnologia intensiva, mercado e individualização. Sob o capitalismo global e a “vida líquida”, a democracia é desafiada por uma demanda social de transformação que não consegue ser adequadamente processada e atendida. Quer-se “democratizar a democracia”, muitas vezes opondo a participação à representação. Ao passo que uns se proclamam ultrademocráticos e exigem sempre mais espaços de protesto e participação, ocorre também uma interdição: com o protagonismo acachapante dos mercados e do grande capital, a democracia é deslocada para a margem, perde valor, é convertida em adereço, em algo para ser usado e exibido, mas não para ser vivido com intensidade.

São, portanto, os próprios termos do jogo arbitrado pelo capitalismo financeiro global que travam a democracia. Para que ela prevaleça e mostre sua potência, os cidadãos precisam se contrapor aos arranjos políticos, econômicos e institucionais em curso. O problema é que não há, a rigor, atores que possam levar a cabo a tarefa de agregar politicamente os cidadãos e assumir a responsabilidade pelos riscos e efeitos que dela disso decorrerão.

Fraqueza da democracia brasileira

O Brasil é um caso particular. Enfrentou dificuldades, ao longo de sua história, para conviver com a democracia política. Conheceu muitos períodos de ditadura e suspensão de direitos. Tal fato perturbou a assimilação de uma cultura democrática pela população e pelo conjunto do Estado. Mesmo depois da modernização econômica do País e de três décadas seguidas de regime democrático, os cidadãos ainda continuam politicamente mal educados, fato agravado pela desigualdade que corta a sociedade, pela precariedade do sistema escolar e pela ausência de uma reforma política que oxigene os canais de comunicação entre o Estado e a sociedade. O próprio Estado permanecesse pouco ágil e muito ineficiente na prestação dos serviços básicos, o que tem comprometido gravemente o que se pode chamar de Welfare State brasileiro. Os governos governam com um flanco desguarnecido por onde se infiltram estratégias de corrupção e de desvios de recursos. O sistema político ajuda a que se troquem favores e dinheiro, seja para dar estabilidade aos governos, seja para alimentar as máquinas eleitorais dos partidos e das coalizões. O aparato policial dos governos não se “democratizou”: age de forma autoritária, mostrando incapacidade de conviver com uma população impregnada de vida “líquida”: dinâmica, individualizada, conectada em redes ativas, avessa a formas mais “sólidas” de organização e ação.

Novas protestas e excessos policiais

Desde o início do ano, a cidade de São Paulo (a principal do País) tem sido palco de sucessivos protestos de rua, incentivados pelo MPL-Movimento pelo Passe Livre, que defende o fim da cobrança das tarifas de transporte público. O estopim das manifestações foi a decisão da Prefeitura municipal de aumentar a tarifa dos ônibus, que passou de R$ 3,50 a R$ 3,80. Como ocorreu em junho de 2013, quando grandes manifestações de massa tomaram conta das principais cidades brasileiras, os protestos atuais acolhem agendas mais amplas, fato que deriva essencialmente de seu caráter aberto e não organizado: todos os que tiverem algo de que reclamar, alguma indignação à flor da pele, uma causa e uma bandeira de luta, confluem nas ruas, encorpando as passeatas que congestionam a cidade. Até agora, em janeiro, as manifestações não impressionaram pelo número de participantes, mas mostraram possuir um amplo conjunto de reivindicações.

Em 2013, a imperícia policial foi chocante. Em boa medida, a manifestação cresceu em repúdio à violenta e desproporcional repressão policial. Agora, em 2016, a polícia voltou às ruas pior do que nunca, descumprindo até mesmo suas próprias normas operacionais diante de distúrbios e protestos. Não aprendeu a dialogar, não melhorou sua capacidade de compreensão do quadro das manifestações. Exacerba no uso da força. Por mais razões que possa ter para "endurecer" em alguns momentos, não contribui para ajudar a cidade a assimilar democraticamente as manifestações e conviver com elas.

Não é por outro motivo que o desentendimento cresceu entre manifestantes e forças de segurança. Pouco preparados para o diálogo democrático em sociedades complexas, tanto a polícia quanto os manifestantes disputam para saber se se deve ou não negociar um trajeto a ser seguido pelas passeatas. Enquanto os policiais alegam que isso é indispensável para que a cidade não pare e os cidadãos não sejam prejudicados, o MPL afirma que não obedece a nenhuma autoridade estatal e que suas decisões são tomadas na própria rua, pelos manifestantes. Todos ganhariam se houvesse uma negociação prévia a respeito, mas negociações não são impostas: são construídas. E falta vontade política para que isso ocorra, tanto da polícia quanto dos manifestantes. A polícia quer impor trajetos, e o MPL não conversa com autoridades e nem negocia longe dos olhares do público. É um diálogo de surdos. No qual se discute a “performance” e o espetáculo que se quer dar e o quanto de incômodo deve causar uma manifestação que, em tese, é política, ou seja, interessa a todos e se contrapõe ao poder político.

Lições não aprendidas

A lembrança de 2013 é fugidia. Não se aprendeu muito com ela. Do lado das forças de segurança, deixou-se de considerar que a violência sempre tende a gerar reações de solidariedade. As pessoas, hoje, podem temer a repressão policial e optam por ficar em casa para não se expor ela, mas verbalizam sua indignação nas redes sociais, o que é uma forma de fazer com que o protesto ganhe corpo e reverbere, provocando de algum modo uma elevação da temperatura política do País. Os que protestam, porém, não conseguem promover avanços democráticos consistentes, mesmo quando obtém vitorias tópicas: ou seja, não se mostram com organização e força suficientes para contagiar a sociedade e encurralar o sistema.

Pelo seu tamanho reduzido e por seu caráter pretensamente "desorganizado", o MPL se movimenta muito e pode dar a impressão de ser maior do que é de fato. Trata-se de um ator importante na dinâmica política de uma cidade como São Paulo, um ator que merece ser respeitado e analisado com atenção. Mas ele pode ser prejudicado por suas próprias características: o voluntarismo típico de sua conduta, a ideia de que a massa toma todas as decisões e escolhe até mesmo o percurso a ser feito, sua recusa a ter lideranças explícitas, seu desejo permanente de espetacularizar o protesto, de "travar a cidade", podem fazer com que o movimento não consiga permanecer agregando apoios e chegue mesmo a entrar em rota de colisão com a opinião pública ou a população que precisa do transporte e da livre circulação. O risco do isolamento é grande, na medida em que não há qualquer disposição do MPL de atuar em conjunto com partidos e outras forças organizadas. Ele parece querer viver a democracia sem aceitar algumas das regras da própria democracia e menosprezando os valores da esquerda democrática.

Grande participação, escassa incidência política

O Brasil tem sido palco de um efervescente desejo de participação. O protesto social, ainda que não seja um dado novo neste país que tem dificuldades históricas para se democratizar, cresceu muito nos últimos anos. A novidade maior deriva do fato de que os protestos não vêm sendo comandados por sindicatos e causas “materiais”: as vozes das ruas pedem melhores políticas públicas, menos corrupção e mais responsabilidade por parte dos governantes. Durante o ano passado, estudantes secundaristas manifestaram-se contra medidas de reforma do sistema escolar propostas pelo governo estadual de São Paulo, conseguindo desativá-las; milhares de pessoas desfilaram pelas cidades pedindo a renúncia da presidente Dilma Rousseff, forçando a que seus defensores buscassem igual demonstração de força.

A participação cresceu, mas até agora não se combinou com a elevação da qualidade da democracia, com um debate público mais consistente ou com o melhor funcionamento do sistema político. O ativismo é intenso, difuso e frenético, performático e movido a redes, mas carece de organização e projeto político. Dialoga pouco com os partidos e estes, por sua vez, estão incapacitados para agir em consonância com as ruas e menos ainda para dirigi-las. O quadro reflete, em boa medida, a desorganização e a falta de protagonismo das esquerdas.

Dos protestos de 2016 não deverá nascer um novo junho de 2013. O clima é outro. A população está mais interessada no desfecho da grave crise política que envolve o governo Dilma, sobre cuja cabeça ainda flutua a ameaça de impeachment. A crise econômica que se anuncia ainda não foi decifrada, as pessoas estão optando por esperar para ver onde tudo vai dar. Não há clareza sobre o impacto que o aumento das tarifas de transporte terá, bem como ainda não se produziu a transição da luta contra os "30 centavos" de aumento no transporte para uma luta que inclua os demais preços públicos (eletricidade, combustível, gás) e o conjunto das políticas, ou pelo menos para as mais importantes (saúde e educação, acima de tudo).

Toda ação política de protesto não favorece a quem quer esfriar uma crise. Se houver uma expansão dos protestos no tempo e no espaço, o mundo da representação terminará por ser mais afetado, assim como os governos subnacionais, dos estados e municípios. Os partidos, que já mal se aguentam em pé, ficarão ainda mais prejudicados em sua tentativa de estabelecer laços de comunicação com os movimentos sociais. A crise política, que já é suficientemente grave, ganhará mais combustível. E tudo isso num ano de eleições municipais.

Pequenos grupos sempre podem produzir efeitos que se multiplicam e ganham volume, valendo-se por exemplo das redes, que hoje são muito ativas. Não dá para descartar que protestos como os do MPL cruzem com as manifestações projetadas contra Dilma para depois do carnaval. Os públicos que participam de ambas as correntes são, porém, muito distintos. De um lado, jovens embalados por um ideal anárquico que os deixa "fora de controle" e potencialmente contra tudo e todos. De outro lado, cidadãos que estão focados no questionamento de um governo em particular, de uma prática política e governamental específica. Difícil que saia alguma articulação disso.

O cenário brasileiro mostra que as ruas podem se movimentar e falar mais sem que isso produza, de imediato e necessariamente, mais e melhor democracia.

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